Festa de Aniversário
Pio
Reuníamo-nos sempre e a casa de mamãe ficava repleta de filhos e vizinhos, sentia que ela, apesar do barulho, adorava ver a casa cheia. Os risos, a certa altura da festa, mais soltos que o de costume. As fofocas que não resistiam e saltavam das bocas, inclusive das mais sérias e vigilantes, nada resiste a um bom gole de cerveja.
Mamãe andava quase que o tempo todo da festa, sentava-se um pouquinho aqui e logo se levantava, era irrequieta por natureza. Lembro-me dos seus olhos que a tudo observava e quase nada deixava escapar, olhos pretos que naquelas ocasiões ficavam brilhantes e às vezes lacrimosos, bastava o som de uma música que evocasse recordações, uma parte de um assunto qualquer que destacava a ingratidão dos filhos e pronto, não se derretia em lágrimas, pois esse não era o seu estilo, mas deixava transparecer uma leve sombra de tristeza, imperceptível para muitos, menos para um filho amoroso.
Hoje, relembrando aqueles encontros, tenho bem nítidos aqueles olhos, mais nítidos que no momento do olhar, gravei-os no coração e na memória e eles olham para mim como se quisessem dizer mais, muito mais do que disseram outrora e qualquer tentativa de expressão verbal se perderia num labirinto, pois a palavra é o veículo que expressa o sentimento, mas não é capaz de substituí-lo ou explicá-lo.
Meu irmão mais velho era o encarregado de acender a churrasqueira, minha irmã preparava a carne e eu preocupava-me com a bebida. Mamãe supervisionava tudo. Não tolerava desperdício e sempre tinha uma história pra contar, que invariavelmente terminava com uma lição de moral. Sempre nos ensinou de forma indireta. Os diálogos francos nunca existiram, eram substituídos por um “causo” que ela jurava ser verídico. Não só contava essas histórias, mas também as dramatizava e com tal convicção que nos hipnotizava a todos.
Aos poucos tudo foi ficando para trás, a vida é sábia, sabe como nos trazer as dores. Traz, na maioria das vezes, em doses homeopáticas. Quando damos
por nós, temos uma lista enorme de vicissitudes e nos perguntamos: “Como tudo aconteceu?”. Meu irmão foi rareando suas idas à nossa casa, mamãe, a princípio, sofreu demais com sua ausência, mas teve que acostumar-se, afinal. Mudei-me para outra cidade, casei-me e de minha parte também fui me ausentando da doce casa materna.
Nas vezes em que nos encontrávamos tudo parecida reviver, nas poucas vezes que meu irmão mais velho esteve conosco reunido chegávamos a esquecer que tudo agora era diferente e uns poucos vizinhos ainda nos prestigiavam com a presença. Pouco a pouco o pano começou a desbotar, até ficar praticamente sem cor. Meu irmão não aparecia mais, minha irmã buscava agarrar-se a um outro mundo, que não o familiar e nos momentos em que tudo isto se consolidava eu nada percebia. A solidão estabeleceu-se em nosso círculo materno.
Ontem estive com eles, menos meu irmão mais velho. Os olhos de mamãe estavam embaçados, mas ela tirava forças não sei de onde, chegou até a sorrir e fazer planos para o futuro. E eu bebi daqueles planos, saboreei-os como a um delicioso licor. Por um instante voltei ao passado e ele se me mostrou mais colorido do que nunca, até minha irmã desfez-se da sua tristeza crônica e ostentava um demorado sorriso nos lábios. Esqueci-me em um canto, com meus cabelos grisalhos, meu olhar severo e minha pouca fala. Vesti-me daquele que havia sido. Dei gargalhadas, contei histórias. Mamãe contou um dos seus “causos”. De repente alguém grita: “ Acende a churrasqueira! ” .
Obedecendo a este comando, tantas vezes ouvido e que agora, embora sendo um eco do passado, ressoava mais forte do que nunca. Desci as escadas, abri uma cerveja, minha irmã trouxe o aparelho de som para o quintal, da mesma maneira que fazíamos e, entre um gole e outro, pus-me à prazerosa tarefa de acender o fogo. Minha mãe desceu uma vez as escadas, tentou olhar tudo com enorme interesse e, em seguida, furtivamente subiu de volta. Eu estava tão envolvido pelo momento que pouco ou nada percebi de pronto.
Minha irmã deixou a carne sobre o tanque de lavar roupas e uma vez acesa a churrasqueira comecei a assá-la. Olhei uma vez para os lados e não vi ninguém, mas o cheiro, a música, o quintal da casa velha, tudo era tão igual...
Experimentei da carne, deliciosa. Minha irmã desceu uma vez e pegou uns pedaços, colocou num prato e saiu. O disco terminou de tocar. O cachorro parou de latir. Fez-se um longo silêncio e então me percebi. O encanto havia terminado, tudo voltara a ser como antes.
Apaguei o fogo, tampei tudo, subi as escadas. Mamãe estava deitada, minha irmã tinha saído. Fui conferir a passagem e arrumar as malas.