quinta-feira, 30 de março de 2017

A última visita

     Estava melhor, tão melhor que telefonou a ele, pedindo que fosse vê-la. Lutando contra a doença, ela dizia que teria alta em breve, queria marcar uma viagem, repetir, tanto tempo depois, o roteiro que haviam feito com o deslumbramento do amor recente: Roma, Florença, Veneza, Verona, Milão, Paris e Lisboa.
     Muitas águas e luas haviam passado, fizeram outras viagens, separaram-se, ela adoecera e agora queria reviver aquelas cidades nos mesmos hotéis, freqüentando os mesmo restaurantes, a Taberna Ulpia, em Roma, ela nem sabia que a taberna fora fechada pela polícia, ali se consumia cocaína. Inocentemente eles fora lá, tão atentos em si mesmos que nem repararam, dançaram o samba do Orfeu na pista, os outros perceberam que dançavam bem, deixaram a pista livre, depois aplaudiram.
     Tudo ficara para trás, nem lembranças boas eram, a realidade apagara uma parte, destacara outra e ela ficara doente e agora exigia que fosse vê-la, já fizera as reservas na mesma agência, mandara a irmã pagar a entrada, depois discutiriam o resto.
     Ele foi. Achou a magnífica, como nos melhores tempos. A lucidez formidável dos que dizem adeus. Ficou surpreso, não sabia dos planos dela, como dizer que tudo aquilo seria impossível?
     Nisso, entrou a enfermeira no quarto. Só então ele reparou que, na banqueta da parede maior, havia vidrinhos de remédio, uma mini- farmácia para as emergências. A enfermeira percebeu que ele se assustou e olhou-o de tal forma que ele compreendeu.
     Então, disse que sim, toparia aquilo tudo, a viagem, o roteiro, a vida. Vida que ela insistia em viver.

Dois dias depois, ele remexia em velhos papéis, recordações de Veneza, Florença e Verona, as duas entradas para os Uffizi, a conta do Dodici Apostoli, de Verona, o perfumado “risotto al funghi del Bosco”. O telefone toca. A irmã avisou: tudo acabara para ela. Só não sabia que acabara também para ele.


Carlos Heitor Cony

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