“Dona Zezé! Dona Zezé!” A simpática senhora de cabelos brancos e passos lentos ouve aqueles gritos, sem contudo registrá-los, há tanto tempo não a tratam por este nome! Hoje, todos a chamam de Dona Maria José, aquele carinhoso apelido ficou para trás, nos seus bons e saudosos tempos de professora. Mas o chamado é insistente e num gesto quase que involuntário olha para o lado e vê um jovem senhor sorridente acenar-lhe com as mãos, tenta lembrar-se da fisionomia, mas suas vistas cansadas apenas conseguem divisar o vulto do rapaz que se aproxima rapidamente.
Ao aproximar-se vem dizendo com voz alegre: “ Não está lembrada de mim, não é?” Aquela voz, um misto de riso e palavras enche sua alma de uma inexplicável alegria, parece renovar-lhe as energias e retorna a um passado distante onde era o que pensa não mais ser, e se sente viva. “ Deixe-me ver, chegue mais perto, a luz do sol está ofuscando-me a visão” diz, tentando disfarçar sua quase cegueira. “ Se não me falha a memória você é o Roger e foi meu aluno no antigo colegial, acertei?
Roger contempla longamente aquela senhora, como num flash a vê à frente da sala de aula, mapa do mundo dependurado na lousa, óculos na ponta do nariz, movimentos rápidos e elegantes... Volta rapidamente para o agora, pois ela o fita a espera de uma resposta.
_Isso mesmo, Dona Zezé, ainda bem, pensei que não fosse lembrar-se de mim, afinal já faz tanto tempo, não é?” Vê-la aqui, neste parque numa tarde de um dia de semana, e numa cidade tão distante da sua causou-me enorme surpresa. Não mora mais em Sacramento?
_Olha, meu querido! Não esqueço uma carinha sequer, todos os meus alunos estão na minha memória, ainda mais você! Adorava geografia, seus olhinhos ficavam vidrados quando eu começava a falar sobre o clima, o solo, as peculiaridades de outros países. Era muito gostoso vê-lo sentado à frente na sala de aula. Lá se vão mais de vinte anos, querido Roger. Parece que foi ontem.
_ Parece mesmo. E é verdade, eu adorava suas aulas, ficava enlevado quando a senhora com uma varinha, parecia uma antena de rádio, ia apontando e falando a respeito dos países. Sabe, em especial me lembro da Índia, do Paquistão e de Bangladesh, Meu Deus! Parecia que a senhora tinha estado lá, falava com um entusiasmo e minha alma devorava suas palavras.
E os dois ficam totalmente envolvidos pela conversa, quem passa pelo parque e os vê, certamente não consegue ver mais que uma velha conversando com um jovem senhor, mas é muito mais que isso. É um encontro de almas, a velha retira-se daquela mulher e agora quem está ali é a mestra Zezé, reencontra seu eu, perdido nos últimos 17 anos, na mediocridade do seu dia a dia de aposentada. O marido, mais velho que ela, faleceu há apenas dois meses, com oitenta anos e foi ela quem dele cuidou até o fim de seus dias. Estava a passeio na casa de sua filha.
Quarenta anos de professora, quase completou quarenta e um, não fosse uma jovem normalista ter ameaçado sua integridade física em sala de aula. A moça não gostou da nota que havia tirado no bimestre e exigiu explicações, como as explicações eram plausíveis e a aluna ficou sem argumentos, apelou para o mais primitivo. Não fossem os outros alunos, certamente ela teria sido agredida. Conseguiu contornar bem a situação, mas o marido e o filho foram radicais: ela não lecionaria mais. Não teve outra alternativa a não ser requerer sua aposentadoria.
Não é amarga, conseguiu contornar bem este revés, embora a saudade da escola, da sala de aula, dos alunos a tenha feito chorar muito nos primeiros meses de afastamento. Fez um trabalho voluntário num asilo, onde conseguiu ensinar alguns velhinhos a ler e escrever. Mas o que gostava mesmo era de ensinar geografia e isto não era mais possível. Sua rotina pós escola não foi fácil, toda uma vida dedicada ao ensino e de repente se viu dentro de casa, ficou perdida, as tarefas de casa não eram o seu forte.
_Dona Zezé, e os Kibutz de Israel, os Kolkhozes da Rússia? Como eu me divertia com aqueles nomes e ao mesmo tempo achava aquilo tudo tão interessante. Aquelas experiências agrícolas em terras tão áridas mexiam demais com a minha cabeça, e quando a senhora associou estas experiências bem sucedidas com a pobreza do nosso Nordeste, nossa! Achei aquilo bárbaro! Tanto é que tantos anos se passaram, nunca pesquisei nada a respeito, porém jamais me esqueço disto!
_Ah! Meu querido, você é que era um bom aluno. Sou uma simples professora, mas fico muito feliz por saber que o pouco que sei pude passar adiante. Ando meio por fora das novas maneiras de se ensinar. São atraentes e eficazes? Desculpe-me, como você poderia saber? Deixou a escola há tanto tempo. Aliás, você fez curso superior?
_Fiz, concluí há dezoito anos o curso de Letras, pensava em ser professor, mas as coisas tomaram outro rumo e por catorze anos trabalhei em atividades burocráticas. Nunca me esqueci do Magistério. De início pensava que logo deixaria tudo e conseguiria realizar meu sonho de ser professor...
_Ah, meu caro Roger! Meu caro Roger! Pensei que esta antiga profissão já não despertasse tanta paixão! Vejo que me enganei. Você passa uma emoção muito forte ao falar assim, mas prossiga, interrompi seu raciocínio.
_Pois então! Há quatro anos prestei um concurso público para professor no Estado de São Paulo e fui aprovado. Nunca me senti tão feliz em toda minha vida. Meu início, porém, não foi nada fácil, querida professora, passei maus pedaços. Conservava na memória o meu tempo de aluno. Pensava que os alunos seriam iguais aos colegas que tive. Acreditava piamente que o respeito pelo professor continuava como dantes. Que os professores só falavam de coisas elevadas e sobre o prazer que deveriam ter pelo trabalho que exercem.
_Ah! Meu querido, não seja tão amargo e saudosista, a educação nunca foi essa maravilha que você sonhava. Lembre-se que em toda profissão existem os bons, os maus, os corajosos, os medrosos, os alegres, os tristes, os preparados e os despreparados. Faz parte da condição humana. O que faz da educação algo mágico e envolvente é a maneira como a abraçamos. Se temos o desprendimento e a coragem de dizer sim e ir à luta concretizamos essa magia em nosso coração e pode ter certeza, ela jamais se desfaz. A paixão pela educação é eterna! Uma vez educadores pra valer, sempre o seremos!
A velha mestra tira de uma vez por todas o cheiro de naftalina de sua mente. Suas idéias são claras, os movimentos decididos e a voz firme. Como o corpo é frágil! Neste momento fica tão evidente a fragilidade deste suposto envoltório da alma. Esta sim, é a que emerge, que se manifesta, que consegue dizer com a força da sua irradiação as verdades esquecidas da vida.
_ Como é bom ouvi-la! Hoje sinto-me mais amadurecido, me desfiz de muitas ilusões, mas faço questão de conservar algumas. A vida sem um pouco de ilusão perde o brilho! Embora, no fundo saibamos que são fantasias, as conservamos conosco, pelo menos até substituí-las por outras.
_ Entreolham-se e ficam a sorrir um para o outro, aqueles segundos parecem uma eternidade. Momentos de paz, enlevo, profunda e calada emoção, de certeza de um breve adeus. Um som longínquo vem os despertar.
“ Mamãe, mamãe!” Uma senhora se aproxima esbaforida e fala, não, ela não fala, grita:
_Quantas vezes tenho de repetir, mamãe? A senhora não pode sair por aí sozinha, ouviu bem? Não pode!
_Mas, minha filha...
_ Nem mais, nem menos. Vamos pra casa!
A mulher sequer olha para o rapaz . Dona Zezé lançou-lhe um olhar que era um misto de desculpa e vergonha, baixa os olhos e segue arrastada pela filha.
Olha para aquele vulto que se afasta, engole um soluço , impede que uma lágrima teimosa corra e pensa: “ Que pena! Nem todos conseguem enxergar, através de um corpo carcomido pelos anos, o espírito pujante de uma eterna educadora!”
Adalto Paceli