A tesoura
I
_Entre, por favor, querido. Esteja à vontade, Gisele está se trocando, sente-se.
Entro timidamente, sem nada dizer, apenas aquiescendo ao convite com um leve sorriso. A sala é ampla e agradável, decorada com simplicidade e bom gosto. D. Gilda olha-me serenamente e percebo que tenta desvendar-me a personalidade, sonda-me o íntimo, ou como dizem os bons mineiros, “tira um mapa”. A mãe de Gisele sente necessidade de dizer alguma coisa. Todos somos assim, o silêncio sufoca e as amenidades têm o poder de nos fazer respirar melhor num momento desses.
_Então, Mateus, como vão as coisas? Deve estar estudando muito, acredito. Último ano de faculdade... Já terminou sua monografia? Enquanto ela pronuncia essas palavras viajo e lembro-me de mamãe, ela nunca se preocupou comigo. Não a censuro, passo a imagem de um homem forte, que dá conta de tudo. No fundo, ela não me vê assim, mas seria mais trabalhoso reconhecê-lo, então prefere essa minha personalidade construída só para ela, minha mamãezinha!
_Sim, D. Gilda, estou fazendo as correções finais para entregá-la no mês que vem. O difícil agora é conseguir um trabalho na área em que estou acabando de me formar. Imagine a minha loucura! Fazer um curso de Letras, com um enorme esforço, sem ter a menor segurança de conseguir trabalhar na educação e já sabendo de antemão os baixos salários que são pagos aos professores!
_Quer saber? Você fez o certo, seguiu o seu coração e isto é o que vale na vida. Você sabe o que a Gisele pensa sobre isso. Quando começou a trabalhar com crianças portadoras de necessidades especiais eu disse: “ Querida, isto é muito sério, pense muito bem antes de iniciar. Ao que ela prontamente retrucou: “Estou convicta do que quero, mamãe, fique tranquila”.
_Como a senhora é diferente das outras mães, D. Gilda, essa sua facilidade para dialogar com seus filhos me comove, sempre foi assim?
_Na verdade, não, quando eles eram pequenos tive sérios problemas de relacionamento com meu falecido marido, ele enveredou-se pelo vício do alcoolismo e era muito rude em casa, muitas vezes violento, pode parecer estranho, mas isso me deixou mais unida aos meninos.
Nesse momento sinto um nó na garganta e lágrimas querem assomar de meus olhos, mas engulo um seco e seguro o choro, não é tanto pelo que essa amável senhora acaba de dizer, mas sim pelo que passei na minha infância. Se o pai de Gisele tinha o triste vício da bebida, o meu tinha por mim uma enorme indiferença e distância; minha mãe, por sua vez, não tinha a firmeza de D. Gilda, ao contrário, era frágil e se acomodou muito bem na situação de mulher submissa com esporádicos ataques de rebeldia.
“Gisele, como você está linda, minha filha, estava aqui aborrecendo seu namorado com minhas repetidas histórias, não é mesmo, Mateus?”
“Ah, Imagina! Sua mãe é uma excelente companhia e foi um enorme prazer ficar conversando com ela, qualquer dia a gente retoma nossa conversa. Vamos, meu amor?”
.............................................................................................................................................
II
_Isso são horas, Mateus? Até agora com aquela mulatinha metida a besta? Como você é ingrato, deixar sua mãe sozinha em casa pra frequentar a casa daquela gentinha e sair por aí colocando o nome da nossa família na lama, você não tem vergonha, meu filho?
Não consigo articular palavra, mamãe fala sem parar e faz gestos teatrais, parece representar uma tragédia grega. Age sempre assim diante das situações mais difíceis, faz um jogo de cena e inicia um enorme monólogo, com inflexões na voz e expressões corporais, mistura à sua fala, diversos ditos populares, um é recorrente “Os antigos diziam e com razão: Dize com quem andas e te direi quem és”. Às vezes termina a encenação com a simulação de um desmaio ou com uma crise de choro. Nesse dia, porém, ela está exagerando ainda mais no jogo de cena.
_Tanta moça boa e você foi escolher justamente essa? Sabe que o pai dela era um péssimo pagador? Vivem de aparências, só porque os filhos estudaram um pouco mais eles se acham os tais. Não vou admitir que você continue com este namorico absurdo.
_ Mãe, eu já tenho vinte anos, não sou mais nenhuma crian...
_Não me interrompa! Por que você não continuou namorando a Beatriz? Ela, sim, é moça pra você. De boa família, os pais têm posses, e além de tudo tem a pele clara e cabelos lisos e compridos. Não aceito você namorar uma negra, jamais! Prefiro morrer a ter que passar por um vexame desses.
_ Pare de gritar, os vizinhos estão ouvindo. O que a senhora pretende com um escândalo desse? Vamos nos deitar e amanhã a gente conversa com mais calma. Mãe, mãe, o que a senhora está escondendo?
-Nada, vá dormir. Eu te avisei, não avisei? Você é quem vai escolher...
Sai com um ar ameaçador e tranca-se no quarto, não consigo dormir, fico o tempo todo imaginando o que ela teria levado para o quarto e meu coração bate acelerado, não quero sentir-me culpado se algo acontecer com mamãe, mas ao mesmo tempo não quero fraquejar. Penso na figura meiga de Gisele, nas palavras doces de D. Gilda e na expressão de terror de mamãe.
No dia seguinte, mamãe sai cedinho para ir à missa. Levanto-me e vou ao seu quarto e ao levantar o travesseiro encontro o objeto da chantagem, uma enorme e pontuda tesoura, pego-a e a escondo nem sei onde, achando que assim amenizo o problema. Enquanto ela ouve os ritos católicos e se prepara para receber a comunhão, reflito em meu quarto. “Valeria a pena brigar por Gisele? E mamãe? Pobrezinha, tão carente e precisando do seu filhinho único... Mas, e eu? E os meus vinte anos? E minha vontade de ter um amor?... Mas isso pode esperar Mateus, você começou a namorar há pouco tempo, fica com sua mãezinha...”.
Tento dormir, mas não consigo, então ligo pra minha amada. Dona Gilda atende e docemente pergunta por mim, observando que minha voz está diferente. Peço que chame Gisele e ao telefone mesmo termino nosso namoro com uma desculpa qualquer. Hoje, muitos e muitos anos depois, ainda ouço o soluço do meu primeiro e único amor e a repetida frase “Não me deixe, e o nosso amor?!” ainda ressoa nos meus ouvidos. Mas, sabe como é, mãe é mãe!
Adalto Paceli
Nenhum comentário:
Postar um comentário