Malu, ser ou não ser?
_Você está emocionada, não está?
_ Estou! Mexer nesta pasta e encontrar
tantas coisas que me fazem lembrar dela...
Um instante de silêncio se fez, não
aprofundei o assunto, a vida tem me ensinado a respeitar as dores alheias, as
minhas, às vezes, me machucam muito, e nem sempre encontro um silêncio amigo.
Desde que comecei a lecionar nesta escola
tenho ouvido falar sobre ela. Falam com saudade, com doçura. Um aluno
desabafou:
_ Professor, como a Malu era legal! Sabia
dizer a coisa certa, ainda que difícil, sempre conseguia chegar ao ponto sem
ferir a gente. Sabe, falava com afetividade e a gente não conseguia ficar com
raiva.
Uma colega confidenciou-me que, ao vir
para nossa escola, não se sentia feliz, passava por uma fase muito difícil e
não via uma luz no fim do túnel. Mas quando reencontrou a Malu, e foi recebida
com entusiasmo, dizendo que tudo ia dar certo, que confiasse. “As mudanças são
sempre para melhor, embora a princípio, possam parecer uma catástrofe” ficou
mais tranqüila, e aos poucos adaptou-se ao novo local de trabalho.
Esther está com uma pasta funcional no
colo, eu ao computador. Incumbiram-nos de redigir a biografia da ex-colega. Já
havia falecido há alguns anos, mas sua memória estava mais viva do que nunca
dentro da escola. Fossem apenas os dados funcionais, onde trabalhou
inicialmente, para onde seguiu depois, os cursos que fez, onde nasceu e outras
coisas do gênero e certamente estaríamos fazendo mais um trabalho burocrático.
Mas sinto que não é só isso, pressinto algo no ar, ela está aqui! Não a
conheci, mas tudo o que comentam e a emoção de minha amiga me fazem sentir sua
respiração, ouço o riso que jamais ouvi, vejo sua imagem, embora não a tenha
conhecido.
Seria esta a comprovação de que o bem vale
a pena? A repetição do dito popular que afirma: “as mãos que oferecem rosas
ficam cheias de perfume”? Não sei dizer, aliás, eu não sei dizer muitas outras
coisas, acho melhor não saber mesmo, as palavras muitas das vezes são
traiçoeiras e estragam momentos que poderiam ser inesquecíveis, a palavra é um
veículo muito rude para o sentimento, tão refinado!
“Professor, aquilo é que era professora.
Que carinho, que dedicação, a gente percebia que ela gostava da gente. Quando
se aproximava da nossa carteira e explicava algum ponto mais complicado, nós a
sentíamos inteira conosco, não só a professora, mas a pessoa, a Dona Malu”.
Estas lembranças vão voltando à minha mente, enquanto Esther vai formulando a
biografia e eu digitando.
_ Sabe, Fabiano, ela era tão desprendida
de bens materiais. Se necessário, gastava todo seu salário ajudando as pessoas,
pensava primeiro nos outros e aquilo que sobrava usava em seu benefício.
Quantas vezes ajudou alunos com dificuldades financeiras! _ diz Esther, como
num monólogo. Mantendo a receptividade à sua fala com os olhos a convido a
continuar falando.
_Quando ela desconfiava que algum dos seus
alunos estava envolvido com a criminalidade ou que enveredara pelos caminhos da
droga entristecia-se profundamente e fazia de tudo para ajudá-lo e quando seus
esforços não eram bem sucedidos, sofria demais! Acho que pessoas assim estão em
extinção.
Enquanto Esther fala, vou recordando o que
uma aluna me disse em sala de aula: “Se o Senhor visse a multidão que apareceu
no velório dela! Nunca vi tanto jovem na minha vida, acho que todos os seus
alunos foram fazer-lhe uma última homenagem. Não sei porque lembrei-me do
enterro do Brás Cubas, o do romance do Machado de Assis, apenas onze pessoas
estavam no seu enterro, ele era o protótipo do homem egoísta e a nossa amiga o
da mulher solidária, que vivia para os outros.
Enquanto redigimos a biografia da Malu,
alguns colegas entram na sala, chegam perto do monitor e dão uma olhada rápida.
Um deles sai comentando: “Eu, hein! Sou é professor, este negócio de mártir,
heroísmo, não é comigo. Sou bom profissional, entro em sala e dou minha aula e
tchau e bênção!” Uma outra se comove: “Ai, como era boazinha! Eu não consigo
ter este desprendimento todo. Não consigo! Isto é privilégio de alguns. Nasceu
com o dom.”
Ouvindo estes comentários, tento analisar
minha prática pedagógica. Sou muito afetivo, enérgico, quero que tudo saia do
meu jeito. Não, não é bem assim! Quando eu comecei achei que podia resolver
todos os problemas da educação, mas o dia-a-dia foi me ensinando que a vida não
acontece desse jeito! Se o fruto está verde é bobagem querer apanhá-lo,
necessário é que amadureça! E tudo tem o seu tempo, não adianta afobação. Com
esta visão tenho conseguido ficar mais tranqüilo. Amo o que faço, tenho
consciência que lido com pessoas, e isto é muito profundo para mim. Olha, vou
dizer-lhe um disparate, acho que sou um pouco Malu. Será que a maioria de nós,
educadores, não o é? Nossa! Olha, estou adjetivando o nome da nossa biografada.
Mas ficou interessante, não acha? Ficaria assim: Todos os educadores somos um
pouco Malu!
Paramos a redação um pouco, estávamos meio
confusos num ponto. Esther perguntou:
_ Não deveríamos colocar no texto que ela
fez curso de Literatura Armênia, que era graduada em Português e Latim, que
trabalhou na Diretoria Regional de Ensino? Afinal estamos fazendo uma
biografia.
Enquanto desenvolvia seu raciocínio
formulo um conceito e quase a interrompo antes de concluir. Minha mente estava
fervilhando. Mal conclui e despejo minha idéia:
É verdade, estamos fazendo uma biografia.
Mas pense comigo, a Malu tornou-se inesquecível não pelos títulos que possuía,
mas sim pela pessoa que era e pela maneira como utilizou estes cursos, ou seja,
em prol dos outros. Fosse uma Doutora, o que, aliás, hoje é corriqueiro, mas vá
lá, façamos de conta que ser mestre e doutor hoje, faz o professor ser melhor
na sua prática. Aliás, não podemos afirmar que o Abominável homem das neves não
tenha existido realmente. Voltemos à ideia inicial, embora tivesse esses
títulos e uma dezena de outros, mas não tivesse a disposição interna de servir,
de ir ao encontro das pessoas, de acreditar no poder da educação, será que seria
tão lembrada como o é até hoje, três anos depois de sua morte?
Minha colega, enquanto falo, acena
afirmativamente com a cabeça e percebo que está possuída pela minha idéia e não
vê o momento de poder falar. Seu interlocutor é muito loquaz e ela muito
paciente. Percebo e passo a bola.
_ Você tem razão, estou há mais de vinte
anos no magistério, quantos e quantos professores passaram pela minha vida! A
maioria deles realmente só passaram. Lembro-me daqueles com os quais tive
alguma relação afetiva e não dos que tinham apenas a capacidade profissional.
Sabe, Fabiano, vou mais longe. Quando era criança tive uma professora que se
chamava Jacira, eu estava no primeiro ano do antigo primário. Não consigo
esquecê-la, tinha os cabelos longos e pretos com tranças. Ela recebeu-me tão
bem, com tanto carinho e cheia de delicadezas para comigo! Pra falar a verdade,
ela era mais meiga e atenciosa que minha mãe. Olha! Ter tido o prazer de entrar
na escola e ser recepcionada pela D. Jacira foi um privilégio que marcou-me pelo resto da vida. Não lembro se
ela ensinava bem, tenho a impressão que sim. E agora contando isto pra você
ficou muito claro que ela abriu as portas da escola para mim, e abriu de uma
forma tão especial, que por mais que outros professores tenham tentado
fechá-las não conseguiram, eu já tinha o segredo da fechadura.
Sorrio para minha amiga e comento:
- Nossa! Que papo mais gostoso, confesso
que quando me pediram para ajudá-la nesta tarefa não me empolguei muito, pensei:
“Ih! Mais uma chateação.” Mas agora aqui sentando ao seu lado e trocando
confidências tão profundas sinto-me muito bem. Mas o que acha de concluirmos a
biografia? Estou ficando com fome e já é quase uma da tarde.
Faltam apenas alguns detalhes, concluímos
o texto, entregamos para a diretora da escola e nos despedimos. Mas a Malu não
saiu da minha cabeça, voltei para casa leve, falar sobre esta figura, mesmo sem
tê-la conhecido mexeu comigo. Sempre me entreguei com paixão àquilo que faço, e
ser professor é a minha realização, a minha alegria, a minha razão de ser. Amo
o que faço. Às vezes odeio, brigo com todo mundo, grito com um aluno levado,
digo pra mim mesmo que não vou levar as coisas tão a sério, que muitos alunos
não merecem. Tudo da boca pra fora, no
outro dia estou acreditando em tudo de novo. Converso com aquele aluno levado e
já esqueci o que aconteceu ontem. Ouço uma música e penso: “Nossa! Que letra
legal pra trabalhar com meus alunos, penso que vão gostar. Vou ao banco e pego
um punhado de panfletos e digo pra mim mesmo: “Esta propaganda está ótima pra
trabalhar verbos. “Acho que não sou um pouco Malu, sou muito!”
Adalto Paceli